A norma constante do art. 1.723 do Código Civil — CC (“É
reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher,
configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o
objetivo de constituição de família”) não obsta que a união de pessoas do
mesmo sexo possa ser reconhecida como entidade familiar apta a merecer proteção
estatal. Essa a conclusão do Plenário ao julgar procedente pedido formulado em
duas ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas, respectivamente, pelo
Procurador-Geral da República e pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro.
Preliminarmente, conheceu-se de argüição de preceito fundamental — ADPF,
proposta pelo segundo requerente, como ação direta, tendo em vista a convergência
de objetos entre ambas as ações, de forma que as postulações deduzidas naquela
estariam inseridas nesta, a qual possui regime jurídico mais amplo. Ademais, na
ADPF existiria pleito subsidiário nesse sentido. Em seguida, declarou-se o prejuízo
de pretensão originariamente formulada na ADPF consistente no uso da técnica da
interpretação conforme a Constituição relativamente aos artigos 19, II e V, e
33 do Estatuto dos Servidores Públicos Civis da aludida unidade federativa
(Decreto-lei 220/75). Consignou-se que, desde 2007, a legislação
fluminense (Lei 5.034/2007, art. 1º) conferira aos companheiros homoafetivos o
reconhecimento jurídico de sua união. Rejeitaram-se, ainda, as preliminares
suscitadas.
ADI 4277/DF, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADI-4277)
ADPF 132/RJ, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADPF-132)
No mérito, prevaleceu o voto proferido pelo Min. Ayres Britto,
relator, que dava interpretação conforme a Constituição ao art. 1.723 do CC para
dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união
contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade
familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família. Asseverou que esse
reconhecimento deveria ser feito segundo as mesmas regras e com idênticas
conseqüências da união estável heteroafetiva. De início, enfatizou que a
Constituição proibiria, de modo expresso, o preconceito em razão do sexo ou da
natural diferença entre a mulher e o homem. Além disso, apontou que fatores
acidentais ou fortuitos, a exemplo da origem social, idade, cor da pele e outros,
não se caracterizariam como causas de merecimento ou de desmerecimento
intrínseco de quem quer que fosse. Assim, observou que isso também ocorreria
quanto à possibilidade da concreta utilização da sexualidade. Afirmou, nessa
perspectiva, haver um direito constitucional líquido e certo à isonomia entre
homem e mulher: a) de não sofrer discriminação pelo fato em si da contraposta
conformação anátomo-fisiológica; b) de fazer ou deixar de fazer uso da
respectiva sexualidade; e c) de, nas situações de uso emparceirado da sexualidade,
fazê-lo com pessoas adultas do mesmo sexo, ou não.
ADI 4277/DF, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADI-4277)
ADPF 132/RJ, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADPF-132)
Em passo seguinte, assinalou que, no tocante ao tema do emprego
da sexualidade humana, haveria liberdade do mais largo espectro ante silêncio
intencional da Constituição. Apontou que essa total ausência de previsão normativo-constitucional
referente à fruição da preferência sexual, em primeiro lugar, possibilitaria a
incidência da regra de que “tudo aquilo que não estiver juridicamente proibido,
ou obrigado, está juridicamente permitido”. Em segundo lugar, o emprego da
sexualidade humana diria respeito à intimidade e à vida privada, as quais
seriam direito da personalidade e, por último, dever-se-ia considerar a âncora
normativa do § 1º do art. 5º da CF. Destacou, outrossim, que essa liberdade
para dispor da própria sexualidade inserir-se-ia no rol dos direitos
fundamentais do indivíduo, sendo direta emanação do princípio da dignidade da
pessoa humana e até mesmo cláusula pétrea. Frisou que esse direito de exploração
dos potenciais da própria sexualidade seria exercitável tanto no plano da intimidade
(absenteísmo sexual e onanismo) quanto da privacidade (intercurso sexual).
Asseverou, de outro lado, que o século XXI já se marcaria pela preponderância
da afetividade sobre a biologicidade. Ao levar em conta todos esses aspectos,
indagou se a Constituição sonegaria aos parceiros homoafetivos, em estado de
prolongada ou estabilizada união — realidade há muito constatada empiricamente
no plano dos fatos —, o mesmo regime jurídico protetivo conferido aos casais
heteroafetivos em idêntica situação.
ADI 4277/DF, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADI-4277)
ADPF 132/RJ, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADPF-132)
Após mencionar que a família deveria servir de norte interpretativo
para as figuras jurídicas do casamento civil, da união estável, do planejamento
familiar e da adoção, o relator registrou que a diretriz da formação dessa
instituição seria o não-atrelamento a casais heteroafetivos ou a qualquer
formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Realçou que
família seria, por natureza ou no plano dos fatos, vocacionalmente amorosa,
parental e protetora dos respectivos membros, constituindo-se no espaço ideal
das mais duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas relações humanas
de índole privada, o que a credenciaria como base da sociedade (CF, art. 226, caput).
Desse modo, anotou que se deveria extrair do sistema a proposição de que a
isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganharia
plenitude de sentido se desembocasse no igual direito subjetivo à formação de
uma autonomizada família, constituída, em regra, com as mesmas notas factuais
da visibilidade, continuidade e durabilidade (CF, art. 226, § 3º: “Para
efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a
mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em
casamento”). Mencionou, ainda, as espécies de família constitucionalmente
previstas (art. 226, §§ 1º a 4º), a saber, a constituída pelo casamento e pela
união estável, bem como a monoparental. Arrematou que a solução apresentada
daria concreção aos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade,
da proteção das minorias, da não-discriminação e outros. O Min. Celso de Mello
destacou que a conseqüência mais expressiva deste julgamento seria a atribuição
de efeito vinculante à obrigatoriedade de reconhecimento como entidade familiar
da união entre pessoas do mesmo sexo.
ADI 4277/DF, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADI-4277)
ADPF 132/RJ, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADPF-132)
Por sua vez, os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e
Cezar Peluso, Presidente, embora reputando as pretensões procedentes,
assentavam a existência de lacuna normativa sobre a questão. O primeiro
enfatizou que a relação homoafetiva não configuraria união estável — que impõe
gêneros diferentes —, mas forma distinta de entidade familiar, não prevista no
rol exemplificativo do art. 226 da CF. Assim, considerou cabível o mecanismo da
integração analógica para que sejam aplicadas às uniões homoafetivas as
prescrições legais relativas às uniões estáveis heterossexuais, excluídas
aquelas que exijam a diversidade de sexo para o seu exercício, até que o Congresso
Nacional lhe dê tratamento legislativo. O segundo se limitou a reconhecer a
existência dessa união por aplicação analógica ou, na falta de outra
possibilidade, por interpretação extensiva da cláusula constante do texto constitucional
(CF, art. 226, § 3º), sem se pronunciar sobre outros desdobramentos. Ao
salientar que a idéia de opção sexual estaria contemplada no exercício do
direito de liberdade (autodesenvolvimento da personalidade), acenou que a
ausência de modelo institucional que permitisse a proteção dos direitos
fundamentais em apreço contribuiria para a discriminação. No ponto, ressaltou
que a omissão da Corte poderia representar agravamento no quadro de desproteção
das minorias, as quais estariam tendo seus direitos lesionados. O Presidente
aludiu que a aplicação da analogia decorreria da similitude factual entre a
união estável e a homoafetiva, contudo, não incidiriam todas as normas
concernentes àquela entidade, porque não se trataria de equiparação.
Evidenciou, ainda, que a presente decisão concitaria a manifestação do Poder
Legislativo. Por fim, o Plenário autorizou que os Ministros decidam
monocraticamente os casos idênticos
ADI 4277/DF, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADI-4277)
ADPF 132/RJ, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADPF-132)
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